O ano era 2014, e eu estava prestes a embarcar em uma nova jornada: mudar para a pequena cidade de Ware, na Inglaterra, para trabalhar em uma multinacional farmacêutica. O caminho até ali havia sido estritamente acadêmico! Graduação e iniciação científica, pós-graduação, mestrado e doutorado, pós-doutorado e aprovação em dois concursos públicos para professor: o primeiro, em 2011, para cargo temporário no UFRJ – Campus Macaé e, em 2013, para cargo efetivo na Faculdade de Farmácia – UFRJ, Campus Cidade Universitária. Foi nesse contexto que surgiu uma oportunidade única de colaboração entre universidade e indústria. Ainda em estágio probatório, solicitei afastamento para uma missão científica e assumi uma posição de pós-doutorado na indústria farmacêutica GlaxoSmithKline GSK , no “Centro de Excelência em Sólidos Orais” da Cadeia Global de Fabricação e Suprimentos. Minha missão era resolver problemas de produção de medicamentos sólidos orais em um método de fabricação que, até hoje, ainda não é realidade no Brasil: a produção contínua de medicamentos.
Ao ser apresentada ao setor onde trabalharia, o vice-presidente de Introdução de Novos Produtos da GSK, que também era chefe do Centro de Excelência, disse: “Bianca, aqui você vai trabalhar com dinossauros…”. Respondi sem hesitar: “Dinosaurs with Diamonds!”
O setor era composto por profissionais sêniores, em sua maioria homens, com o meu tempo de vida em anos de experiência na indústria – verdadeiros diamantes em conhecimento. Muitos estavam perto da aposentadoria e participavam ativamente do início de uma revolução na produção farmacêutica: a produção contínua de medicamentos!
O vice-presidente mantinha uma forte conexão com universidades, o que viabilizou minha ida para a indústria. Acompanhei-o em visitas à De Montfort Universityem Leicester, onde ele ministrava palestras sobre produção contínua e promovia bate-papos com alunos. Disfarçado de palestrante, era, na verdade, um verdadeiro headhunter, sempre em busca de talentos para a indústria.
Meu supervisor direto era diretor técnico sênior, doutor em Ciências Farmacêuticas, com publicações científicas desenvolvidas dentro da própria indústria, e um dos autores do Sistema de Classificação de Fabricação (Manufacturing Classification System, MCS – um excelente tema para as próximas edições). Ele seguiu sua trajetória na área industrial, mas com grande apreço e participação na academia, o que facilitou e enriqueceu ainda mais meu período por lá!
Na GSK, vivenciei na prática a produção contínua de medicamentos – uma verdadeira orquestra sinfônica! Os pós eram alimentados e processados continuamente por operações unitárias integradas até se tornarem comprimidos, com lotes definidos pelo tempo de produção em uma dada taxa de fluxo dos materiais e com monitoramento e controle em tempo real para garantir a qualidade do produto. Desenvolvi competências técnicas e de gestão, liderei reuniões com fornecedores, solicitei análises, realizei experimentos, resolvi problemas de produção, apresentei resultados em reuniões globais da empresa e congressos acadêmicos, e publiquei artigo científico: https://doi.org/10.1080/03639045.2018.1513024.
Também estreitei a colaboração da GSK com a DMU, utilizando a infraestrutura acadêmica para desenvolver parte dos experimentos e superar entraves regulatórios da indústria, que poderiam restringir e retardar o desenvolvimento do projeto.
Na DMU, como pesquisadora honorária, estabeleci uma sólida colaboração com a professora Walkiria Schlindwein , editora do livro sobre Quality by Design (QbD) farmacêutico e líder de dois cursos de pós-graduação na área – tema que mais tarde levei para minhas aulas, junto com a produção contínua! Continuamos colaborando até hoje, e publicamos recentemente mais um artigo juntas: https://doi.org/10.1016/j.ijpx.2024.100308
Essa experiência transformou minha visão sobre a indústria, seu papel na academia e, mais do que isso, ampliou meu conhecimento sobre o desenvolvimento e a produção farmacêutica. Ao retornar à UFRJ, criei a disciplina “Atuação do Farmacêutico na Indústria”, com a participação de profissionais da área. Desenvolvi o projeto de extensão Conexão Farmacêutica: Universidade – Indústria, que contou com mais de dois mil participantes, além da organização do primeiro simpósio no Brasil sobre QbD e Produção Contínua de Medicamentos. Também atualizei todos os meus materiais de aula nas disciplinas de Farmacotécnica e Tecnologia Industrial Farmacêutica. Além disso, iniciei uma nova linha de pesquisa voltada à área industrial farmacêutica, contribuindo para a formação de recursos humanos para essa área, orientando pesquisas colaborativas, incluindo Mestrado Profissional, e participando de bancas nessa temática.
O melhor indicador de sucesso do meu trabalho é quando vejo meus egressos, ex-alunos e orientandos alcançando seus objetivos, seja no âmbito acadêmico ou profissional, como atuar na indústria.
Embora a colaboração entre universidade e indústria enriqueça a formação acadêmica nos aspectos técnico, científico e prático, além de fortalecer o desenvolvimento profissional e impulsionar a pesquisa e a inovação, ela ainda enfrenta muitos desafios.
A distância entre o conhecimento acadêmico e sua aplicação prática ainda é um obstáculo na preparação dos estudantes para o mercado de trabalho. Muitos recém-formados que não tiveram experiência em estágio na indústria passam de um a dois anos obtendo certificações antes de iniciar a busca por emprego. Em alguns casos, essas certificações tornam-se mais valorizadas do que o próprio diploma, evidenciando um problema central: a lacuna entre a formação acadêmica e as exigências da indústria. Embora existam muitas instituições de treinamento voltadas para o ensino de habilidades específicas da indústria, elas geralmente estão fora do alcance financeiro dos estudantes. Além disso, a pesquisa industrial não é disponibilizada publicamente até que atenda aos interesses comerciais, limitando ainda mais o acesso ao conhecimento prático. Para reduzir essa lacuna, os estudantes devem ser incentivados a trabalhar com problemas reais da indústria. A universidade, enquanto formadora de profissionais, precisa estar atenta às demandas do setor, preparando os alunos não apenas com uma base teórica sólida, mas também com as habilidades práticas que os tornarão mais competitivos e aptos a enfrentar os desafios do mercado. Dessa forma, a colaboração com a indústria é um meio de construir pontes que conectem a teoria acadêmica à prática profissional (Ahmed et al., 2022).
A indústria, além de aplicar o conhecimento acadêmico, gera um enorme volume de dados e experiências que são essenciais para aprimorar processos, solucionar desafios técnicos, acompanhar transformações regulatórias e tecnológicas, e gerar inovação. A retroalimentação desse aprendizado para a academia é fundamental para a formação de profissionais mais preparados para as demandas do mercado.
Para incentivar a colaboração da indústria, também é essencial que as instituições acadêmicas se engajem nesse processo, visando benefícios mútuos. Os pesquisadores devem desenvolver currículos que abordem os principais desafios da indústria, considerando como esse conhecimento pode ser benéfico para ambos os lados. É fundamental incorporar práticas industriais essenciais na academia para ajudar os estudantes a desenvolverem suas habilidades (Ahmed et al., 2022).
Segundo a OECD (2019), essa troca de conhecimento entre academia e indústria acontece por meios formais, como pesquisa colaborativa, consultoria acadêmica, licenciamento de patentes, mobilidade de pesquisadores e criação de spin-offs. Além disso, canais informais, como publicações científicas, conferências, networking e compartilhamento de instalações, fortalecem essa integração. Promover essas conexões é essencial para construir pontes entre a teoria e a prática, formando profissionais mais alinhados às demandas do setor.
A experiência que tive na indústria é um canal de troca de conhecimento, denominado de Mobilidade de pesquisa: um movimento que ocorre por meio do deslocamento de pesquisadores acadêmicos para a indústria e vice-versa, geralmente através de contratos temporários. No meu caso, a mobilidade se deu por meio de um convênio de cooperação bilateral entre governo e indústria, especificamente entre o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a GSK.
Nesta edição, discutimos como a mobilidade entre academia e indústria pode transformar a aplicação do conhecimento e impulsionar a inovação farmacêutica. Mas essa é apenas a primeira etapa dessa jornada! Nas próximas edições da UNINDU, vou aprofundar em temas que revolucionam a produção farmacêutica, como produção contínua de medicamentos, Quality by Design (QbD) e Manufacturing Classification System (MCS).
Se você participou de algum canal de conexão academia-indústria, compartilhe sua experiência!
Nos vemos na próxima edição!
Um abraço,
Bianca Santos
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